14.05.2024 - Terceirização da atividade-fim e subordinação compartilhada

(www.conjur.com.br)

Otavio Torres Calvet

Para quem não sabe, só em 2017 tivemos uma regulamentação geral no Brasil sobre o fenômeno da terceirização. Antes, aplicávamos o entendimento construído na Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, embasada na ideia da impossibilidade de terceirização da atividade-fim.

A lógica jurisprudencial trazia algumas consequências interessantes, como a percepção da pureza dos elementos da relação de emprego apenas e tão somente entre o trabalhador terceirizado e a prestadora de serviços, não permitindo nenhum traço de pessoalidade ou subordinação diretas em relação ao tomador, a empresa contratante.

Nada mais razoável, pois se terceirizar é delegar atividades a empresas prestadoras de serviços, incumbe a estas contratar empregados para execução do objeto do contrato, figurando, assim, como o real empregador, aplicando-se a tradicional visão dual do Direito do Trabalho ao novo fenômeno de gestão empresarial.

Tanto era assim que a já ultrapassada Súmula 331 dispunha em seu item III que “não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta”.

Em outras palavras, ainda que se tratasse de objeto lícito de terceirização, se na prática os elementos da relação de emprego estivessem presentes em relação ao tomador dos serviços, haveria de se reconhecer a ilicitude da terceirização, estabelecendo-se o vínculo diretamente com a empresa contratante.

Conceito dual x Relações trilaterais
A questão é sabermos se, com a atual legislação (Lei 6.019/74 modificada pelas Leis 13.429/2017 e 13.467/2017), bem como após as decisões vinculantes do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, na ADPF 324 e no Tema 725 da Repercussão Geral, devemos ou não manter o antigo entendimento do TST, de que pessoalidade e subordinação diretas gerariam a ilicitude da terceirização.

A indagação é pertinente, pois depois de muito relutar a aplicação das teses vinculantes do Supremo sobre terceirização na atividade-fim, inicia-se na Justiça do Trabalho nova fase para justificar seu afastamento, agora por meio da técnica do distinguish, conforme se observa do julgamento do Recurso de Revista TST-Ag-AIRR-10339-89.2015.5.05.0531, item 2.3 da ementa:

“Com efeito, a jurisprudência desta Corte vem assentando o entendimento de que a existência de subordinação direta do empregado à empresa tomadora dos serviços não se amolda à tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 324 e do RE 958.252, caracterizando, ao revés, fraude, o que implicaria, em atenção ao princípio da primazia da realidade, no reconhecimento do vínculo de emprego diretamente com esta. Precedentes.”

De fato, se a terceirização for mero simulacro, se o caso concreto demonstrar que todos os elementos do vínculo de emprego estão presentes em relação ao tomador dos serviços, que a prestadora foi contratada apenas para fraudar a aplicação dos preceitos trabalhistas, não há que se titubear, o caso é de reconhecer o vínculo diretamente com o tomador dos serviços (empresa contratante), aplicando-se o artigo 9º da CLT.

Ocorre que a análise dessa suposta fraude pelos elementos da pessoalidade e da subordinação não podem ocorrer com a mesma visão tradicional que inspirou o texto celetista em 1943, época em que vigorava a ideia de relações de trabalho duais, entre empregado e empregador.

Foram décadas de um silogismo óbvio: quem exerce poder diretivo é o empregador; na terceirização o empregador é o prestador de serviços, não o tomador; se o tomador estiver dando ordens ou exigindo pessoalidade, ele é o verdadeiro empregador; fraude.

A interpretação clássica, assim, remete ao conceito dual de relação de emprego, sem levar em conta a prática de relações trilaterais, como no caso da terceirização. Será que o exercício do poder diretivo, que denota a subordinação, deve ficar realmente concentrado unicamente na figura do empregador (prestadora de serviços)? Ou pode ser compartilhado com o tomador (contratante) a partir do momento em que é possível terceirizar a atividade-fim?

A lógica do trabalho temporário
A resposta pode ser dada por mera interpretação lógica, reforçada por aplicação de caso semelhante há muito pacificado, o da intermediação de mão-de-obra típica do trabalho temporário, prevista na Lei 6.019/74, que desde sua criação autoriza a contratação de trabalhador para a atividade-fim do tomador.

Ali sempre se entendeu que para substituir pessoal permanente ou para demanda complementar de serviços (antigo acréscimo extraordinário) poderia a empresa contratante (tomadora) admitir trabalhadores temporários tanto na atividade-meio quanto na atividade-fim, o que hoje está expresso no artigo 9, §3º da citada lei.

Como consequência, a doutrina nunca titubeou em apontar que, no trabalho temporário, o exercício do poder diretivo é compartilhado, podendo o tomador dos serviços emitir ordens aos empregados assim contratados.

Nada mais coerente, pois, se o gestor possui trabalhadores efetivos e terceirizados executando tarefas idênticas, ambos na atividade-fim, há necessidade de uma coordenação única, de um comando único, de uma gestão única para se atingir os objetivos empresariais de forma organizada e produtiva.

Já imaginou um setor com trabalhadores de diversas empresas terceirizadas e empregados efetivos, nas mesmas tarefas da atividade empresarial, cada um com um comando diferente? Sem comunicação ou organização para o exercício de tais atividades? Seria um caos.

Quem disse que seria fácil?
Ao invés de olharmos para o novo fenômeno da terceirização da atividade-fim sob a antiga ótica da relação dual de emprego, precisamos reformular os paradigmas que nos informaram por décadas e parar com a “obsessão fraudeana” que já comentei em artigos passados.

A construção de um novo modelo de terceirização exige uma nova interpretação do fenômeno trabalhista, não mais retilínea e compartimentalizada como a do passado. Primeiro, simplesmente não poderia haver terceirização, depois só na atividade-meio, época em que nosso mundo ainda fazia sentido.

Agora, que a terceirização chegou plenamente à atividade-fim, precisamos nos atualizar para novamente não causar enorme insegurança jurídica e injustas condenações, sob o pretexto de não afrontarmos o STF pelo distinguish, mas com aquele sentimento de que podemos mais uma vez ignorar a realidade para reafirmar o passado.

A atualidade pede uma nova mentalidade trabalhista. Sei que demora, que há resistência, mas o fato é que ninguém disse que seria fácil, ou, parafraseando Rupi Kaur, “quem disse que eu queria fácil, eu não gosto de fácil, gosto de difícil”.

Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e membro da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT).

Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-mai-14/terceirizacao-da-atividade-fim-e-subordinacao-compartilhada/

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