Por Fernando Facury Scaff
Foi divulgado semana passada um texto importantíssimo sobre a reforma tributária. Não se trata (ainda) do substitutivo das PECs 45 e 110, mas de Conclusões do GT (grupo de trabalho) relatado pelo deputado federal Aguinaldo Ribeiro (PP-BA). A partir dessas conclusões será elaborado o substitutivo à PEC 45, cujo relator é o mesmo deputado.
Parte-se das seguintes premissas: (1) o atual modelo brasileiro de tributação do consumo é ruim, conforme exposto no item 4.1 das conclusões; (2) nem toda proposta que se apresente é necessariamente melhor do que o atual modelo. Deve-se considerar ainda que (3) esse conjunto de tributos foi responsável por 38% de toda arrecadação tributária no Brasil em 2021 e (4) esse sistema, mesmo ruim, nos permitiu chegar a ser a 7ª economia mundial. A partir daí inicia-se a análise crítica das Conclusões apresentadas pelo GT.
O texto apresentado, com 92 páginas em PDF (clique aqui para ler na íntegra), traz um excelente resumo das apresentações realizadas pelos incontáveis convidados pelo GT, que devem ser lidas e analisadas de tal modo a entender o impacto nos diversos setores consultados.
As diretrizes das conclusões são apresentadas a partir da página 74, no item 4.3, denominado "Diretrizes do Grupo de Trabalho para o Substitutivo a ser apresentado à PEC nº 45, de 2019", que são, em sua essência, as abaixo indicadas.
1ª) O GT recomenda que haja a substituição dos cinco tributos sobre o consumo por um imposto geral sobre o valor agregado, denominado IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), nos moldes internacionais de um IVA (Imposto sobre o Valor Agregado), que alcançará toda a base de consumo, sejam bens materiais, imateriais, serviços ou direitos sobre eles.
O IBS será cobrado "por fora", isto é, sem que o montante do imposto integre a própria base imponível, e será cobrado "no destino", isto é, de acordo com a alíquota do local em que vier a ser consumido. Será também não-cumulativo, alcançando plenamente todos os insumos utilizados gerem créditos a serem abatidos nas etapas seguintes, independentemente de comprovação do efetivo pagamento do imposto pelo fornecedor.
2ª) Foi também estabelecido como diretriz que o IBS será dual, isto é, um imposto de competência da União e outro para Estados e Municípios, embora as características principais venham a ser idênticas, visando simplificar o sistema. Haverá uma alíquota padrão, permitindo-se outras alíquotas para bens e serviços específicos, e não para setores da economia. Foram listados como exemplos os relacionados à saúde, educação, transporte público coletivo urbano, semiurbano ou metropolitano e aviação regional, bem como a produção rural e a cesta básica.
3ª) O GT também adotou como diretriz a adoção do cashback, como uma forma de diminuir a regressividade do IBS.
4ª) Foi também estabelecida a diretriz de manutenção da Zona Franca de Manaus e do Simples Nacional, devendo ser facultado aos contribuintes enquadrados neste modelo a opção para adoção do IBS no formato proposto.
5ª) Para a distribuição dos recursos arrecadados, que se caracteriza como matéria de direito financeiro e não de direito tributário, o GT recomenda que o Fundo de Desenvolvimento Regional seja financiado primordialmente com recursos da União, sendo considerada a utilização dos critérios de partilha hoje adotados para o FPE – Fundo de Participação dos Estados.
6ª) Sobre os atuais benefícios fiscais, o GT recomenda que os convalidados na forma da Lei Complementar 160/17 sejam respeitados até seu encerramento, o que impactará na transição entre o sistema atual e o que se propõe.
7ª) Não foi estipulada uma diretriz de prazo fixo para a plena transição federativa entre os sistemas, mas uma recomendação de ser adotado “um período longo para acomodação de Estados e Municípios à nova realidade”.
8ª) A gestão do IBS deverá ser compartilhada pelas diferentes administrações tributárias estaduais e municipais, de um lado, e pela Receita Federal, de outro, coordenadas pelo Conselho Federativo a ser criado para gerenciar o sistema.
9ª) O imposto seletivo proposto pelo GT terá por finalidade desestimular o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
10ª) Embora o foco do GT tenha sido a tributação do consumo, foram apresentadas diretrizes para a tributação do patrimônio e de sua circulação. Propôs-se tributar veículos aquáticos e aéreos através do IPVA, que deverá também ser progressivo em razão do impacto ambiental do veículo. O ITCMD deverá ser progressivo em razão do valor da transmissão. E o IPTU poderá ser atualizado por decreto, a partir de critérios gerais previstos em lei municipal.
Feito o relato acima, embasado nas diretrizes aprovadas nas conclusões do GT, constata-se que nada justifica a substancial alteração que está sendo proposta, uma verdadeira revolução tributária sobre o consumo, que pode muito bem ser realizada de modo pontual, como muito menor impacto na economia e para as empresas.
Analisemos por partes.
Sobre a 1ª diretriz: É óbvio que a tributação do consumo deve ocorrer onde ocorre o consumo; logo, neste ponto, está correta a diretriz, porém não é necessário fazer uma PEC para isso, sendo suficiente modificar por Resolução do Senado Federal as alíquotas de origem e destino do atual ICMS (artigo 155, parágrafo 2º, IV, CF). A vantagem de usar o sistema atual ao invés de fazer a modificação através de PEC é que serão necessárias menores modificações nas legislações infraconstitucionais, pois, ao invés de criar um novo sistema, apenas se vai adaptar o que já existe, com muito menos impacto econômico. O mesmo pode ser dito acerca do aproveitamento integral dos créditos, acarretando sua plena não cumulatividade, e em sua incidência "por fora", o que poderia ser efetuado até mesmo por meio de lei complementar.
Sobre a 2ª diretriz: A criação de uma IBS (IVA) dual é melhor do que a ideia anterior, que propunha um IBS único. Assim, a União poderá, com extrema facilidade unificar o PIS e a Cofins, para o que já existe um PL em trâmite no Congresso, e os estados e municípios unificarão o ICMS e o ISS, para o que será necessária uma Emenda Constitucional, porém sem a amplitude pretendida. Já o IPI, federal, será dissolvido no imposto seletivo, também proposto pelo GT, o que pode ser feito por lei ordinária — ver comentário sobre a 9ª diretriz, abaixo.
Observa-se que essas diretrizes vão ao encontro da manifestação da ministra Simone Tebet (Planejamento), no dia 4/4/23, perante o GT, que elencou como princípios básicos da RT a unificação dos tributos e o princípio de destino. A ministra acertou, porém não é necessário fazer uma revolução para implementar tais princípios, como acima referido, sendo suficiente aperfeiçoar o que hoje existe.
Observa-se que as 1ª e 2ª diretrizes sintetizam a modificação tributária proposta, sendo as demais apenas sua decorrência, fruto da revolução tributária a ser adotada na tributação do consumo. Vamos às demais diretrizes.
Sobre a 3ª diretriz: A adoção do cashback será apenas um reforço aos sistemas de amparo à pobreza já existentes, como o Bolsa Família. Basta ver que o Rio Grande do Sul estipula um teto de R$ 100,00 para devolução. Será mesmo necessário criar uma máquina específica para gerir esse sistema? Ou será melhor calibrar o valor do Bolsa Família incluindo esse novo critério?
Sobre as 4ª, 6ª e 7ªdiretrizes: A recomendação é manter a Zona Franca de Manaus e o Simples Nacional. Logo, nada a ser alterado. O mesmo quanto aos benefícios fiscais convalidados pela Lei Complementar 160/17, que se recomenda sejam mantidos até seu encerramento. Análise idêntica para a o período de transição federativa entre os modelos, caso o ajuste ocorra de forma pontual, sem a revolução tributária proposta sobre o consumo.
Sobre a 5ª diretriz: O Fundo de Desenvolvimento Regional, matéria de direito financeiro, pois diz respeito à repartição do produto arrecadado, decorre da implantação da RT. Logo, pode-se calibrar os fundos que já existem e manter a sistemática de tributação hoje existente.
Sobre a 8ª diretriz: O modelo de proposto de compartilhamento de gestão tributária será um verdadeiro inferno regulatório para os contribuintes, que não terão apenas que se haver com os Fiscos correspondentes, mas também como essa nova instância decisória fiscal.
Sobre a 9ª diretriz, referente ao imposto seletivo: Caso venha a ser implantado, sugere-se que ele alcance não apenas as externalidades negativas, aumentando a carga tributária sobre alguns bens, mas também sobre as externalidades positivas, reduzindo a carga tributária do IBS para certos produtos. Isso aperfeiçoaria o atual IPI.
Por fim, a 10ª diretriz, que diz respeito à tributação do patrimônio: As proposições parecem interessantes, mesmo que o foco central do GT seja a tributação do consumo. Isso apenas aponta para a falta de um plano de voo da RT, que se encontra focada na tributação do consumo, mas deveria observar todo o sistema tributário: consumo, renda, propriedade e folha de salários. Diversos depoimentos realizados perante o GT apontam nessa direção.
Um princípio que foi esquecido em todo o conjunto de diretrizes é o da isonomia, não aplicado como no passado, tratar igualmente a todos, mas de forma contemporânea, isto é, tratar desigualmente aos desiguais, na medida de sua desigualdade, buscando torná-los iguais. Não dá para tratar todos os setores de forma absolutamente igual. É necessário fazer política econômica com o sistema fiscal. Repito: fazer política econômica e não partidária ou corporativa. Não ficou claro nas diretrizes se os estados e municípios poderão estabelecer alíquotas complementares para quaisquer produtos, ou apenas para aqueles que a PEC vier a estabelecer, acarretando uma camisa de força para todos os bens e serviços, cuja alíquota está sendo imaginada em 25%, o que parece estar subestimado. Engessar isso acarretará infração ainda mais clara ao pacto federativo e muita concentração de poder em Brasília.
Em breve síntese: não é necessário fazer uma revolução tributária para se chegar ao mesmo resultado proposto pelas diretrizes do GT. O sistema constitucional tributário atual já permite que, com ajustes, se chegue ao mesmo resultado, com a vantagem de aproveitar todo o conhecimento atualmente existente, seja na interpretação, seja na implementação das normas.
Existe um conceito que está sendo colocado em segundo plano, que é o da dependência da trajetória (path dependence), pelo qual as estruturas estabelecidas no passado condicionam, de certa forma, a possibilidade de amplas modificações. O receio é que a ampla modificação proposta, que batizei de revolução, acarrete impacto econômico não demonstrado e, portanto, não dimensionado. Estima-se, sem provas, que a economia será dinamizada — o que até acredito, embora não haja um único cálculo apresentado nesse sentido. Tudo que está sendo proposto de melhoria pode ser efetuado com menor impacto econômico e jurídico, por certo. Ajustes pontuais são sempre bem vindos, mas nem sempre as revoluções o são.
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.
Revista Consultor Jurídico