Giuseppe Giamundo Neto
Fernanda Leoni
A atual Lei Geral de Licitações (Lei Federal nº 14.133/2021) incorporou em sua redação a previsão da obrigatoriedade de que, nos aditivos celebrados ao longo da vigência de um contrato administrativo, seja mantido o “desconto” original ofertado pelo contratado na oportunidade da licitação, isto é, o percentual obtido da diferença entre o valor total da proposta e o montante previsto no orçamento de referência da administração pública.
É o que se extrai do artigo 128 da norma ao estabelecer que “nas contratações de obras e serviços de engenharia, a diferença percentual entre o valor global do contrato e o preço global de referência não poderá ser reduzida em favor do contratado em decorrência de aditamentos que modifiquem a planilha orçamentária”.
Apesar de a norma não ser exatamente uma novidade, é a primeira vez que essa determinação passa a constar de uma legislação de caráter mais geral, aplicável a todos os contratos que tenham por escopo obras e serviços de engenharia. Até então, essa previsão estava restrita aos contratos custeados com o emprego de recursos federais, por força das disposições do Decreto Federal nº 7.983/2013 [1], que estabelece regras e critérios para elaboração do orçamento de referência de obras e serviços de engenharia, contratados e executados com recursos dos orçamentos da União, e eventualmente de regulamentos estaduais e municipais que previssem essa sistemática.
As origens do instituto a que denominamos por manutenção do desconto da proposta derivam da jurisprudência do Tribunal de Contas da União, posteriormente incorporada às disposições de algumas normas orçamentárias, editadas principalmente a partir 2008 [2]. A Lei Federal nº 11.768/2008, que estabelecia as diretrizes para a elaboração e execução da Lei Orçamentária do ano seguinte, inaugurou a previsão nesse sentido [3], que passou a constar de diferentes Leis de Diretrizes Orçamentárias dos anos posteriores, e, consequentemente, passou a reforçar a legitimidade do TCU em exigir a observância dessa regra na fiscalização de contratos públicos executados com recursos federais.
Jogo de planilha
Com efeito, no âmbito da Corte de Contas Federal muitos entendimentos foram moldados sobre a temática, mas muitas vezes sob um viés mais rígido, típico ao controle. Para o TCU, a regra da manutenção do desconto da proposta era um importante instrumento para evitar a prática do “jogo de planilha”, o qual, em sua visão, ocorreria quando em um aditamento se promovesse “a majoração dos itens com preço acima do mercado e a consequente redução, por aditivos, dos que apresentam preços inferiores aos parametrizados” [4]. Assim, a manutenção do mesmo desconto ofertado em proposta quando da celebração desses aditivos reduziria as chances de simulação e reconfiguração de quantitativos e preços em planilha em desfavor ou prejuízo da administração pública contratante.
A previsão da novel legislação, a par de muitas outras, acata a jurisprudência formada, mas perde uma oportunidade de melhor regulamentar questões que não são muito bem endereçadas nas auditorias realizadas e que podem, ao invés de evitar o temido jogo de planilha, implicar desequilíbrio do contrato. É o caso da completa ausência de disposição sobre essa obrigatoriedade aplicar-se indistintamente entre alterações de quantitativos e preços originários do contrato e aqueles preços incorporados posteriormente ao ajuste (“preços novos”), em razão de alterações contratuais. Em nossa visão, há justificativas para que o tratamento desses casos não seja necessariamente a mesma, senão em risco de se levar uma situação de um extremo ao outro, isto é, evita-se um pretenso prejuízo à administração pública, transferindo-o ao contratado.
Isso porque, para os casos em que a alteração contratual se limita à modificação de quantitativos, cujos preços já estavam estabelecidos no contrato desde a sua celebração, não se vislumbra relevante risco de desequilíbrio pela manutenção do desconto. As quantidades acrescidas ou decrescidas teriam os mesmos preços unitários previstos desde o certame, ainda que naturalmente reajustados, e o desconto percentual aplicado ao valor global da alteração manteria a vantagem do contratante, e que inclusive pode ter sido a causa da própria contratação, cogitando-se que a seleção tenha se dado pelo critério do menor preço global.
Parcela compensatória negativa
Por outro lado, preços novos, acrescendo quantitativos de serviços não previstos originariamente no contrato, ao observarem as referências aplicáveis (Sicro, Sicapi e outras tabelas oficiais) já estariam dentro dos parâmetros de mercado e a aplicação do desconto da licitação de forma indistinta poderia ocasionar um cenário no qual os valores acabariam muito abaixo dessas referências, mas em condições bastante diversas daquelas estabelecidas para o próprio certame. Cite-se, como exemplo, situação em que o contratado tenha ofertado um desconto significativo na proposta, porém, ao longo da execução, a administração determina a alteração da metodologia executiva de uma pequena parcela dos serviços que implica a contratação de insumos, mão de obra ou equipamentos que não estavam previstos no contrato. Ao se adotar as referências oficiais para estabelecer o preço desse aditivo, o contratado observa os valores de mercado, no entanto, impondo a eles o “desconto da proposta” pode se distanciar consideravelmente do próprio preço de mercado, tendo de executar um serviço por valor inferior à justa remuneração da atividade [5].
Em algumas situações, para evitar que o contratado absorva esse prejuízo de forma imediata, o TCU propôs que fosse incluída ao aditivo uma “parcela compensatória negativa” correspondente à diferença percentual traduzida em valores e que poderia ser diluída ao longo dos pagamentos recebidos a partir da glosa desses montantes[6]. Ainda que os impactos da medida certamente sejam menores, a medida ainda não afasta o ponto fulcral de que o contratado permaneceria absorvendo um prejuízo, porém, de forma mais espaçada.
Além da questão quanto à manutenção dos preços de mercado, impedindo que o risco de jogo de planilha implique, em verdade, o enriquecimento ilícito da administração pública, um critério importante para análise quanto à aplicação ou não do desconto pode ser a origem ou previsibilidade do aditivo celebrado. Valendo-se do mesmo exemplo, a modificação realizada decorreria de alteração de metodologia executiva, a critério do contratante, sobre a qual o contratado, a princípio, não teria qualquer responsabilidade direta ao ter seguido a previsão do edital quando da formulação da sua proposta, o que o isenta de assumir os encargos dessa modificação. Fatos imprevisíveis ou supervenientes, que modifiquem a execução ou imponham novos serviços, também entram nessa lógica.
Apesar da objetividade da legislação, claramente não há qualquer impedimento para que a aplicação do desconto da proposta aos aditivos contratuais observe as condições específicas de cada caso concreto e, em alguma medida, a intencionalidade das proposições. Nesse sentido, o ministro Walton Alencar Rodrigues, no voto proferido no Acórdão nº 1.755/2004-Plenário, que fixou a temática no âmbito do TCU, esclareceu que caberia “perscrutar se, no caso concreto, a alteração ocorre para lograr proveitos ilegítimos ou se atende ao interesse público”, sendo certo que “para o deslinde da questão, deve ser privilegiado o exame da conduta finalística dos agentes envolvidos”. Na origem, portanto, a recomendação do TCU era de prudência quanto à aplicação do desconto.
Portanto, questões como a necessidade de se avaliar a intenção de vantagem indevida, a concepção de que a redução da diferença do desconto da proposta não caracteriza, a priori, jogo de planilha ou prejuízo ao erário e a necessidade de preservação dos preços de mercado e do equilíbrio econômico-financeiro do contrato como garantia a ambos os contraentes devem dar o norte da exigência ampliada pela Lei de Licitações, evitando-se o aumento da litigiosidade em tema já naturalmente conturbado e que muito raramente envolve soluções simples.
[1] Nesse sentido, estabelece o artigo 14, do Decreto: “Art. 14. A diferença percentual entre o valor global do contrato e o preço global de referência não poderá ser reduzida em favor do contratado em decorrência de aditamentos que modifiquem a planilha orçamentária”. Até 2023, previa-se uma exceção para os contratos firmados sob o regime de empreitada por preços unitários e tarefa, que acabou sendo revogado pelo Decreto nº 11.855. A disposição revogada estabelecia o seguinte: “Em caso de adoção dos regimes de empreitada por preço unitário e tarefa, a diferença a que se refere o caput poderá ser reduzida para a preservação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato em casos excepcionais e justificados, desde que os custos unitários dos aditivos contratuais não excedam os custos unitários do sistema de referência utilizado na forma deste Decreto, assegurada a manutenção da vantagem da proposta vencedora ante a da segunda colocada na licitação”.
[2] Sobre a origem da jurisprudência do controle sobre o tema, vide: ROSILHO, André; DE CARVALHO, Gabriela Duque Poggi. A proibição da redução do desconto original da proposta na celebração de aditivos aos contratos de obras públicas. Revista da AGU, v. 20, n. 4, 2021.
[3] Nessa norma, previa-se que “a diferença percentual entre o valor global do contrato e o obtido a partir dos custos unitários do SINAPI não poderá ser reduzida, em favor do contratado, em decorrência de aditamentos que modifiquem a planilha orçamentária” (artigo 109, §6º).
[4] Trecho extraído do Acórdão nº 1.514/2015-Plenário, proferido em sessão de 17/06/2015, sob a relatoria do Ministro Bruno Dantas.
[5] Antonio Cecílio e Aniello Parzialle também trazem um exemplo prático, indicando que por representar a redução da lucratividade do contratado, poderia haver a recusa na celebração do aditivo. Em nossa visão, há casos, inclusive, que a aplicação do desconto de forma indistinta pode não somente reduzir a lucratividade, mas até mesmo inviabilizar a execução do serviço. Veja a lição dos autores: “Exemplificando, oferecendo o contratado um desconto global de 11% sobre o valor estimado da contratação, constante da planilha de composição de preços unitário, na ocasião do aditamento não poderá tal percentual ser reduzido, fato que reduzirá os custos com a execução, incrementando, todavia, a lucratividade do particular. Todavia, caso o particular aceite tal condição, que, no caso concreto, gerará para o contratado certa redução da lucratividade fixada na sua proposta comercial, nos parece que o termo aditivo não estará eivado de ilegalidade” (PIRES, Antonio Cecílio Moreira; PARZIALLE, Aniello. Comentários à nova lei de licitações públicas e contratos administrativos. São Paulo: Almedina, 2022, p. 714).
[6] Nesse sentido, vide o Acórdão nº 2.66/2019-Plenário, da lavra do Ministro Augusto Nardes: “9.2. nos termos do art. 1º, inciso XVII, da Lei 8.443/1992, responder ao consulente que: (…) 9.2.4. nas situações em que, em virtude do aditivo, houver diminuição do desconto originalmente concedido, pode-se incluir parcela compensatória negativa como forma de se dar cumprimento ao art. 14 do Decreto 7.983/2013, ressalvada a exceção prevista em seu parágrafo único; (…)”.
Giuseppe Giamundo Neto
é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do escritório Giamundo Neto Advogados.
Fernanda Leoni
é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC), especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura, bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.