Giuseppe Giamundo Neto
Fernanda Leoni
A Lei Federal nº 14.133/2021, apesar das críticas sobre sua efetiva capacidade de inovação, trouxe um regramento bem mais completo e organizado sobre o tema das garantias da proposta e do contrato, contribuindo positivamente para um cenário de maior segurança jurídica aos licitantes / contratados e à própria administração pública quanto ao cumprimento das obrigações contratadas.
Centrando a temática entre os seus artigos 96 e 102 — com menções esparsas apenas para algumas temáticas específicas, como é o caso da execução da garantia, que se encontra entre as normas sobre a extinção do contrato, e da garantia da proposta, alocada no capítulo sobre a apresentação da documentação licitatória —, a garantia da proposta e do contrato passou por uma reformulação, com especial destaque para as novas regras atinentes ao seguro-garantia.
Mantida como uma prerrogativa da administração pública, cuja conveniência será avaliada diante do caso concreto, a nova lei conservou a caução, o seguro-garantia e a fiança como modalidades de garantia admitidas (artigo 96, §1º). Em dezembro de 2023, foi, ainda, acrescida a possibilidade de se adotar o título de capitalização, custeado por pagamento único, e com resgate pelo valor total, conforme inciso IV, inserido pela Lei Federal nº 14.770/2023. A escolha pela modalidade de garantia prestada, dentre aquelas prevista no rol do artigo 96, mantém-se como faculdade do contratado.
Não renovação e seguro-garantia
Uma importante disposição, em meio ao regramento das modalidades, diz respeito à possibilidade de não renovação da garantia no período em que o contrato se mantiver suspenso por ordem ou inadimplemento da administração pública (artigo 96, §2º). Trata-se de possibilidade que beneficia não somente o contratado, que precisava do resguardo judicial para elidir-se dessa obrigação no período da suspensão/inadimplemento [1], como principalmente ao contratante, que não precisará arcar com esse dispêndio, geralmente a ele atribuído.
Também digna de nota a concessão de um prazo específico para o seguro-garantia contratual, que será de, no mínimo, um mês entre a homologação do certame e a assinatura do contrato (artigo 96, §3º). Com isso, possibilita-se uma análise mais apurada da instituição que prestará o seguro, sobretudo diante das alterações que possibilitam faculdade similar ao step in rights, abordada adiante.
Precisamente sobre o seguro-garantia, modalidade que recebe predileção dos contratados em razão dos menores custos envolvidos, a NLLC deixou bem mais clara sua cobertura (multas, prejuízos e indenizações decorrentes do inadimplemento contratual), seu prazo de vigência (igual ou superior à vigência contratual, podendo o seguro ser endossado quando de eventual prorrogação) e a manutenção dessa vigência mesmo nos casos em que o contratado não pague o seu prêmio (mensalidade), assegurando à administração pública maior proteção contra eventual recusa de cobertura por inadimplemento do seguro. Especificamente para os contratos de execução ou fornecimento contínuo, permitiu-se a substituição da apólice de seguro em seu aniversário, ao invés de seu endosso, desde que mantidas as mesmas condições, muito possivelmente visando alguma redução de custos ao contratado, visto se tratar de contratos de duração mais delongada.
Quanto ao valor da garantia, mantêm-se as limitações de 1% para a garantia da proposta e de 5% para a garantia do contrato, ambos calculados sob o valor inicial do ajuste (artigo 58, §1º e 98). Para os contratos de serviços e fornecimentos contínuos de vigência superior a um ano, o percentual de 5% pode ser calculado sobre o valor anual (e não total) do contrato (artigo 98, parágrafo único). É permitido, em casos devidamente justificados pela complexidade técnica e riscos envolvidos, que o percentual da garantia seja majorado para 10% do valor da contratação (artigo 98). Nos contratos de obras e serviços de engenharia de grande vulto esse percentual poderá ser de até 30% do valor contratado (artigo 99).
Encerramento da garantia
Como regra, o encerramento definitivo da garantia contratual ocorrerá mediante liberação ou restituição, uma vez concluído o contrato ou sendo ele extinto por culpa exclusiva da Administração, devendo seu valor ser atualizado se prestada em dinheiro (artigo 100). Por outro lado, havendo a extinção do contrato por ato unilateral da administração, a garantia poderá ser executada para ressarcimento dos prejuízos sofridos pela administração pública, pagamento de verbas trabalhistas, fundiárias e previdenciárias, pagamento das multas devidas ao contratante ou exigência, quando cabível, da assunção da execução e da conclusão do objeto do contrato pela seguradora (artigo 139). A garantia da proposta é liberada em até dez dias úteis da assinatura do contrato ou declaração do certame como fracassado, salvo se presente causa que autorize sua execução (artigo 58, §§2º e 3º).
Artigo 102
Certamente a principal inovação quanto ao tema das garantias está no artigo 102 da norma, que prevê a possibilidade de que a seguradora assuma a contratação no caso de inadimplemento, hipótese denominada como “cláusula de retomada”. Nessa situação, a seguradora poderá ter uma série de prerrogativas que lhe permitam a execução da avença, tais como a assinatura do contrato e aditivos como interveniente, a emissão de empenho em seu nome e a subcontratação da obra ou serviço, inclusive de forma total.
A assunção do contrato pela seguradora, no entanto, é facultativa, visto que o artigo 102, em seu parágrafo único, autoriza tanto a conclusão do objeto contratado, com isenção do pagamento do seguro, como a opção deste pagamento, uma vez que não interesse à seguradora a invocação da cláusula de retomada. Embora somente a prática seja capaz de fornecer uma visão sobre a efetividade do instituto, a doutrina vem apontando que a possibilidade apresenta ao menos um incentivo para que os seguros sejam aptos a efetivamente reduzir os riscos contratuais, visto que as seguradoras, podendo assumir um contrato a qualquer momento, terão mais atenção em sua fiscalização [2].
A dúvida que ainda remanesce com relação ao tema diz respeito à sua abrangência. Embora o artigo 102 se refira à possibilidade de inclusão da cláusula de retomada nos contratos de obras e serviços de engenharia no geral, o artigo 99 designa o cabimento dessa cláusula nos contratos de grande vulto. Na nossa compreensão, a cláusula geral sobre o tema é aquela descrita no 102, não havendo qualquer limitação para que essa assunção do objeto se restrinja aos contratos de maior vulto, ainda que compreensível a dúvida trazida pela leitura desses dispositivos.
Conclusão
Como síntese, tem-se que a NLLC traz um avanço significativo na regulamentação das garantias da proposta e do contrato, além de abordar novos mecanismos — tais como o título de capitalização e a cláusula de retomada —, visando adaptar-se às complexidades contemporâneas dos contratos administrativos. No entanto, apesar da maior clareza e organização, a aplicabilidade prática dessas inovações ainda precisa ser avaliada [3], de forma que as regras não sejam meramente promissoras, mas efetivamente capazes de fornecer um cenário de adequada gestão de riscos.
[1] Apesar de a Lei nº 8.666/1993 nada dispor sobre a obrigatoriedade de manutenção da garantia contratual nesse período, havia certo consenso no sentido de tratar-se de uma obrigação relacionada à vigência, e não à execução do contrato, conforme leitura conjunta dos artigo 56, §2º e 79, §2º, I, da norma. Para evitar penalizações, a liberação do endosso costumava ser obtida por meio de ação judicial. Nesse sentido: “Ação Ordinária de rescisão de contrato administrativo. Suspensão determinada pela contratante. Deferimento parcial de tutela antecipada. Exoneração da vigilância da obra e liberação da caução. Manutenção do julgado. Suspenso o cumprimento do contrato por tempo indeterminado, fica a contratada dispensada de exercer vigilância sobre a obra pública e liberada a caução prestada. Agravo desprovido”. (TJSP. Agravo de Instrumento nº 00020160-23.1998.8.26.0000. Relator Demostenes Braga. 1ª Câmara de Direito Público. Sessão de 08/09/1998).
[2] FORTTINI, Cristiane e AMORIM, Rafael. Conjur. O seguro-garantia no âmbito do Projeto de Lei no 1.292/1995. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-12/interesse-publico-seguro-garantia-ambito-pl-12921995/. Acesso em 03/06/2024.
[3] Somente agora no último mês de abril de 2024 que se lançou o primeiro edital de um grande certame com cláusula de retomada. Cf.: https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/seguros-e-resseguros/noticia/2024/04/30/licitacao-no-mt-testa-modelo-que-preve-clausula-de-retomada-de-obras-publicas.ghtml. Acesso em 03/06/2024.
Giuseppe Giamundo Neto
é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do escritório Giamundo Neto Advogados.
Fernanda Leoni
é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC), especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura, bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-jun-05/garantia-da-proposta-e-do-contrato-na-nova-lei-de-licitacoes/