Manuela Tucunduva
Desde 1º de novembro de 2023, o recolhimento das contribuições previdenciárias e sociais oriundas das reclamações trabalhistas deixou de ser realizado pela GFIP/GPS e passou a ser recolhido via Documento de Arrecadação da Receita Federal (Darf), emitida por meio da DCTFWeb e gerada após a transmissão dos eventos S-2500 e S-2501 no eSocial.
Contudo, o Manual do eSocial, que deveria orientar os contribuintes com regras claras para as escriturações, tem-se revelado como um verdadeiro desafio interpretativo. As constantes atualizações do texto e versões sistêmicas transformaram o manual em um verdadeiro emaranhado de regras confusas, contraditórias e atécnicas.
No texto, são utilizadas expressões jurídicas sem compromisso com a semântica e conceituação adequadas. A exemplo da expressão “transitada em julgado” citada em diversos trechos do documento e utilizada em desacordo com a legislação processual.
A primeira referência ao trânsito em julgado consta no evento S-2500, ao estabelecer o prazo de envio das informações ao eSocial:
Prazo de envio: até o dia 15 (quinze) do mês subsequente à data:
a) da determinação judicial para o cumprimento da decisão líquida transitada em julgado;
Comentários sobre a alínea ‘a’
Antes de adentar no problema conceitual do trânsito em julgado citado no manual, cabe fazer uma reflexão quanto a alínea “a”. Note-se que, segundo o eSocial, o processo é elegível a ser escriturado mediante a concomitância de três circunstâncias processuais: decisão líquida, trânsito em julgado e determinação de cumprimento.
Entretanto, ao discorrer sobre as informações adicionais para transmissão do evento S-2500, o texto omite a palavra “líquida”, gerando a dúvida se as decisões ilíquidas também deveriam ser escrituradas:
Informações adicionais:
1. Assuntos gerais
1.2. Devem ser prestadas nesse evento, independentemente do período abrangido pelas decisões/acordos, as informações relativas a:
a) processos trabalhistas cujas decisões transitaram em julgado do dia 1º de outubro de 2023 em diante;
Essa discussão é incabível, pois os dois trechos devem ser analisados de forma complementar. Analogicamente, referindo-se à regra matriz da incidência tributária, as alíneas descritas no item 1.2 seriam o critério material, enquanto o primeiro trecho do manual, que se refere ao prazo para escrituração, seria o critério temporal.
Assim, sistemicamente, devem ser escriturados no eSocial “os processos trabalhistas cujas decisões transitaram em julgado do dia 1º de outubro de 2023”, até o dia 15 do mês subsequente à “determinação judicial para o cumprimento da decisão líquida transitada em julgado”. Desta forma, não existindo uma “decisão líquida”, não haverá determinação para o seu cumprimento e, consequentemente, obrigação de escrituração do processo no eSocial.
Tanto é que na alínea “c” do item 1.2 há determinação para escrituração de “processos com trânsito em julgado da decisão homologatória dos cálculos de liquidação a partir dessa mesma data, mesmo que o trânsito em julgado da sentença condenatória tenha ocorrido em data anterior”.
Expressão ‘trânsito em julgado’
Feitas tais considerações, insta discorrer sobre o “trânsito em julgado” à luz do Direito do Trabalho e do Manual do eSocial, pois – ao que parece – possuem amplitudes diferentes.
Em que pese a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não abranger em seu texto legal a definição de coisa julgada, por interpretação do artigo 769, aplica-se o conceito do Código de Processo Civil (CPC), descrito no artigo 502.
Os artigos 583 e 783 do CPC, por sua vez, estipulam que, para o início da pretensão executiva da liquidação de sentença, é necessária a presença de título executivo, fundado em obrigação certa, líquida e exigível. Todavia, os artigos 356, 354 e 523 do CPC deixam claro que é permitido o início da liquidação e do cumprimento definitivo de pronunciamento jurisdicional que julgou apenas parcela do mérito, criando, assim, a figura do “trânsito em julgado parcial” de decisão, pautada na teoria dos capítulos da sentença.
Partindo dessa previsão do CPC, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho editaram o Ato Conjunto TST.CSJT.CGJT Nº 3/2020 regulamentando o julgamento antecipado parcial do mérito no processo do trabalho. Ainda acolhendo a possibilidade do trânsito em julgado parcial, a Súmula 100 do TST dispõe que “havendo recurso parcial no processo principal, o trânsito em julgado dá-se em momentos e em tribunais diferentes, contando-se o prazo decadencial para a ação rescisória do trânsito em julgado de cada decisão”.
Dilema do ‘trânsito em julgado unilateral’
Retomando a discussão para fins do eSocial, temos que a expressão “trânsito em julgado” citada no Manual deve ser lida em consonância com o CPC e a CLT, e, também, de forma ainda mais abrangente, em propositado desvirtuamento do próprio instituto.
Explica-se: no direito do trabalho em sede de execução, o magistrado pode optar por abrir vista às partes, por um prazo sucessivo de oito dias, para manifestação sobre o cálculo, requerendo a indicação dos itens e valores objeto da discordância, sob pena de preclusão, conforme o art. 879, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho.
Alternativamente, o magistrado pode, também, optar por proferir a sentença de liquidação diretamente, homologando os cálculos, nos termos do artigo 884 da CLT e abrindo vista as partes a posteriori, para que o reclamante apresente sua impugnação e para que a reclamada pague a condenação ou oferte embargos à execução, após realização de depósito do valor em conta judicial, apresentação de apólice ou realização de penhora.
Em ambos os caminhos, caso a reclamada entenda que os cálculos estão integralmente corretos ou que existam valores incontroversos a título de contribuições previdenciárias e imposto de renda e queira efetuar o pagamento espontaneamente, somente conseguirá fazê-lo por meio do Darf, após envio dos eventos S-2500 e S-2501 no eSocial.
Todavia, nesse momento processual, pode ainda não ocorrido o trânsito em julgado da decisão de liquidação, seja porque o reclamante apresentou impugnação ou porque a própria reclamada pode ter embargado parcialmente quanto à determinada verba constante nos cálculos.
E nem se diga que o item 1.2, alínea “e” do manual teria previsto essa hipótese ao determinar que os processos deverão ser informados até o dia 15 do mês subsequente à “determinação judicial para cumprimento antecipado da decisão, ainda que parcial”. Isso porque, na prática trabalhista, é comum o magistrado não determinar o pagamento do incontroverso em favor do reclamante enquanto não finalizada toda a discussão sobre os cálculos.
Assim, optando a reclamada por quitar espontaneamente seu débito, no intuito de estancar os juros, multa e/ou correção monetária, para emissão da guia Darf, terá que fazer a transmissão dos eventos no eSocial e a confissão da dívida na DCTFWEB, independentemente do trânsito em julgado, em desacordo com a previsão literal constante no manual.
Nesse sentido, sendo um pagamento espontâneo e não havendo ainda o “trânsito em julgado”, cria-se a inédita e curiosa figura do “trânsito em julgado unilateral”. Uma inovação processual (para não dizer aberração) decorrente da manobra interpretativa que a reclamada terá que adotar para quitação da ação trabalhista e cumprimento da obrigação acessória.
Vê-se que o Manual do eSocial, na parte que trata da escrituração das reclamatórias trabalhistas, é mais um exemplo de normativas governamentais desprovidas de respaldo técnico-jurídico e publicadas sem o devido estudo de viabilidade operacional, processual e sistêmica.
Manuela Tucunduva - é sócia do Balera, Berbel e Mitne Advogados.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-ago-05/o-dilema-do-transito-em-julgado-no-esocial-trabalhista/