Por José Souto Tostes
Foi publicado em 1º de abril de 2021 a intitulada nova lei de licitações públicas, que recebeu o número 14.133, que será a substituta do texto em vigor desde 1993 (Lei nº 8.666). Apesar dos avanços esperados não atingirem as inovações já existentes no mercado, como a implantação de novas tecnologias para controle de estoques de produtos armazenados e até o controle de bens móveis, a nova lei incorporou anos de jurisprudências e doutrinas da antiga norma, organizando o mundo jurídico das licitações.
Já em vigor, para os que optaram em usá-la, a nova lei passará à obrigatoriedade em 1ºde abril de 2023, daqui a um ano. E muito ainda precisa se definir quanto à sua real utilidade. Constata-se isso pelo fato de que há muito da norma nova a ser regulamentado pelos entes, além de lacunas na interpretação que só a jurisprudência a se firmar poderá elucidar.
As obras doutrinárias a respeito da nova lei já estão no mercado, com ênfase num excelente texto do festejado professor Marçal Justen Filho, lançado por meio da editora Revista dos Tribunais (RT) e outras que merecem e podem servir de subsídios para estudos.
A preocupação, porém, é quanto à preparação para a aplicação da nova lei nos pequenos municípios e câmaras municipais, que detêm orçamento próprio e realizam, diariamente, compras e contratações das mais diversas.
Note-se que um fenômeno se impõe sobre o universo das contratações públicas brasileiras: o aumento substancial da terceirização dos serviços que no passado eram realizados por servidores públicos. Isso redunda num aumento de procedimentos que dependem do regramento imposto por intermédio da nova lei.
Em 2020, dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 326 eram habitados por mais de 100 mil cidadãos. Ou seja, o Brasil é formado por cidades pequenas, redundando em prefeituras sem infraestrutura de pessoal em condições de ampla capacitação e treinamento.
Os órgãos de controle externo, TCU e tribunais de contas já pacificaram entendimento de que os gestores devem capacitar os servidores públicos, para que consigam aplicar as normas em vigor no país. Há inúmeros julgados no sentido, inclusive, que a contratação de serviços de capacitação e treinamento é obrigação do gestor, o que pode ocorrer por intermédio de inexigibilidade de licitação (permissivo da lei antiga e da nova — artigo 75, III, f). Da jurisprudência destacamos a decisão 439/1998, do TCU, que ilustra bem a matéria.
Diante de tais observações devemos concluir que os gestores públicos, especialmente dos pequenos municípios, das autarquias, Câmaras Municipais, precisam estabelecer, desde já, um calendário de capacitação e treinamento voltado para a utilização da nova lei. A partir de 1º de abril de 2023, daqui a um ano, ela se tornará de aplicação obrigatória. E tal calendário, se não iniciado, deve ser imediatamente posto em prática, inclusive com o estudo interno da lei e, principalmente, o estabelecimento de comissão, visando a edição de norma voltada para a regulamentação local do seu texto.
Fala-se com preocupação desse tema, pois a capacitação é necessária para todas as instâncias das administrações, desde as secretarias municipais e unidades de uma autarquia até o pessoal lotado nos setores e unidades de licitação e contratação, os conhecidos "setores de compra".
A nova lei traz como princípio, já em seu artigo 5º, a segregação de funções, vedando que os servidores designados para funções de contratação, tais como agentes de contratação ou pregoeiros, realizem tarefas que são típicas dos interessados no requerimento e na realização da contratação, como é o caso das peças de planejamento, estudos técnicos, termo de referências, projeto básico e anteprojetos. Reafirmemos: as peças de planejamento obrigatoriamente devem ser elaboradas pelos interessados diretos.
Tardar nessa regulamentação, capacitação e treinamento pode significar a ocorrência de riscos para os gestores, especialmente, como dito acima, dos pequenos entes, como municípios e Câmaras, que não são dotados de corpo técnico especializado. As cortes de contas estarão vigilantes na análise da aplicação da nova norma.
Em junho de 2021 o TCE/SP emitiu comunicado aos jurisdicionados recomendando que os entes públicos paulistas "avaliem a conveniência e a oportunidade sobre a imediata adoção das regras da Lei nº 14.133/21, com atenção às modificações de dispositivos que foram alterados com as novas normativas".
Por sua vez, o TCU e o TCE/MG já responderam a consultas no sentido de que é viável a utilização parcial da nova lei, inclusive quanto aos valores para a dispensa de licitação, que é superior ao permissivo correlato da lei nº 8.666/93.
A adoção imediata de um cronograma de preparação para a implantação da nova lei é o dever de casa dos gestores públicos. Levando-se em conta até mesmo o que Marçal chamou de "deslegalização" que o legislador adotou ao estabelecer regras limitadas para definir as modalidades licitatórias, esse mister caberá aos prefeitos, vereadores e responsáveis por autarquias e empresas públicas, quando se refere aos municípios brasileiros.
José Souto Tostes é ex-procurador municipal, ministrante de cursos na área de licitações e direito público, articulista e autor do blog "Artigos", onde publica textos comentando a legislação brasileira e decisões da Justiça. Atualmente é advogado na área de licitações, representando empresas que atuam no mercado de fornecimento ao Poder Público, além de prestar consultoria para municípios e Câmaras Municipais.
Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2022, 16h22
FONTE: https://www.conjur.com.br/2022-abr-04/souto-tostes-cuidados-gestores-lia