Por meio de ‘reclamações’, tribunal elastece precedente de terceirização para usurpar competência da Justiça do Trabalho
CÁSSIO CASAGRANDE
É sabido que a reforma trabalhista estabeleceu a possibilidade de terceirizações em atividades-fim. O STF, provocado, entendeu pela constitucionalidade das normas elaboradas pelo Congresso, conforme julgamentos proferidos na ADC 48, na ADPF 324, e no RE 958252. Neste último, foi fixado o tema 725, cuja tese é a seguinte: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
Observe-se que nos acórdãos que deram origem à tese, em diversos votos, ficou ressalvado de forma muito clara que o julgamento não impedia que a Justiça do Trabalho examinasse, caso a caso, a existência de relação de emprego quando ocorrerem fraudes para disfarçar sua natureza, sob a forma aparente de um contrato civil. Leia-se, em particular, o pronunciamento do ministro Alexandre de Moraes que afirma em um trecho da ADPF 324:
“Se houver uma ilicitude travestida de fraudulenta terceirização, não se trata aqui, de terceirização, se trata de uma fraude, cuja roupagem dada de forma fraudulenta foi um contrato de prestação de serviços. Nesses casos, obviamente, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização dos responsáveis. O Direito não vive de rótulos. (…) O Direito vive da análise real da natureza jurídica das relações e aqui, no caso, das relações contratuais”.
Ocorre que neste ano, em diversas decisões monocráticas, o STF tem se baseado no referido precedente para cassar decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem relação de emprego diante de variadas fraudes ao contrato de trabalho e que nada têm a ver com terceirização de atividade-fim, isto é, aquela situação tradicional onde a empresa principal contrata outra especializada em determinada atividade ou etapa do processo produtivo, nas quais usará os seus empregados para executar o serviço contratado, quase sempre realizado nas instalações da contratante.
Valendo-se de uma interpretação jurídica equivocada e insustentável, a corte têm interpretado a expressão “qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas” para legitimar todo e qualquer arranjo usado por empregadores para mascarar o contrato e fraudar o trabalhador, como a “pejotização” (Reclamação 61.115-BA), a falsa “sociedade de 0,1%” (Reclamação 53.899-MG), o “advogado associado” de salário fixo (Reclamação 55.769-MG) e a surpreendente “franquia” em que o “franqueado” só entra com o suor do seu trabalho (Reclamação 58.333-SP).
Toda e qualquer decisão da Justiça do Trabalho que reconheça uma fraude à relação de emprego agora é passível de cassação monocrática via reclamação, bastando haver a existência de um contrato civil sob qualquer formato!
Além do mais, o STF, nessas decisões, está se valendo de um meio processual completamente impróprio e inidôneo para se avaliar provas: a reclamação constitucional, que não se destina a exame de probatório, mas sim de violação a tese constitucional.
Isso para não se falar na natureza monocrática de tais decisões, inservível ao fim ampliado que a corte lhes está dando nessas hipóteses, por meio das quais, sem observância do devido processo legal, ministros da corte, com fundamentação superficial e precária, afastam decisões de várias instâncias da Justiça do Trabalho, julgadas com respeito absoluto às garantias processuais constitucionais e sem qualquer violação ao precedente aludido. Na forma indevida em que essas decisões têm se apresentado, o STF age de forma arbitrária e ilegítima, comportando-se como um verdadeiro tribunal de exceção na cassação de direitos constitucionalmente garantidos à classe trabalhadora.
Se prevalecer esse monstruoso entendimento, de que a tese do Tema 725 tem como premissa a presunção absoluta de validade de todo e qualquer contrato civil sob o qual há uma relação de trabalho, então o contrato de trabalho simplesmente desapareceu e com ele o art. 7º. da Constituição. Contrato de trabalho só haverá se o empregador quiser. Ora, desde que o Direito do Trabalho se separou do Direito Civil, no século 19, sua pedra angular foi e continua sendo a de que o pacto laboral é um “contrato-realidade”, cujo corolário é a possibilidade de decretação de sua nulidade pela autoridade competente ou em juízo, quando constatada uma subordinação factual.
Não há dúvida que a realidade do mercado de trabalho comporta “outras formas contratuais que não a CLT”, expressão repetida em diversas destas decisões. Nunca ninguém sustentou o contrário e o STF chove no molhado ao repetir essa ladainha inútil, como se tivesse descoberto que a Terra gira em torno do Sol. É claro que há distintas formas de relação de trabalho e a relação de emprego celetista é apenas uma delas. A questão é como determinar, em cada caso, o que é uma e o que é outra. Tarefa que pressupõe produção e análise de provas, inclusive para analisar possíveis fraudes nos termos do art. 9º da CLT.
Quem tiver o mínimo de experiência de vida sabe que essas “outras formas contratuais”, absolutamente legítimas quando usadas em boa-fé, são com frequência usadas em má-fé por muitos empregadores, que condicionam a contratação do trabalhador à assinatura de um contrato simulado em que a “promessa de autonomia” jamais é concretizada no plano dos fatos.
É a deformação, a deturpação, a desnaturação, o desvirtuamento do que está no papel que importa para o Direito do Trabalho – no Brasil ou em qualquer país civilizado do mundo. Como dizia o grande constitucionalista alemão Ferdinand Lassalle, “se você plantar uma macieira em seu quintal e colocar sobre ela uma placa dizendo que a árvore é uma figueira, ela continuará produzindo maçãs e não figos”.
A grande juíza norte-americana Ruth Bader Ginsburg, em seu célebre voto vencido no infausto caso Epic System v. Lewis (2017), lembra que o contrato de trabalho congrega duas partes em forte assimetria de forças, no qual uma delas está em posição de impor suas condições no ato de admissão, naquilo que os americanos chamam de “take-it-or-leave-it contract” (pegar ou largar), o que geralmente afasta a presunção de autonomia da vontade.
A prevalecer o entendimento de que contratos civis de prestação de trabalho entre pessoas jurídicas têm presunção absoluta de validade (e nenhum dos precedentes originários evidencia esse pressuposto), todas as empresas do país simplesmente poderiam contratar trabalhadores como “autônomos”, “sócios”, “terceirizados”, “pessoa jurídica”, independentemente da substância factual da relação.
E mesmo diante da presença fática de elementos que indiquem a subordinação do trabalhador, a Justiça do Trabalho estaria proibida de reconhecer o vínculo de emprego, por obediência a um precedente que jamais poderia autorizar essa interpretação teratológica. In extremis, isso seria a revogação indireta dos direitos sociais dos trabalhadores previstos na Constituição e a consequente falência do sistema de previdência social por falta de arrecadação! Será que Suas Excelências, os ministros do STF, no alto de sua sabedoria, já pararam para refletir sobre isso?
Observe-se, ademais, que o legislador que aprovou as normas da reforma trabalhista (Leis 13.429/2017 e 13.467/2017) jamais pretendeu dar esse alcance que o STF vem adotando ao aplicar a Tese 725 aos casos de reclamação constitucional.
Como se lê das exposições de motivo tanto da Câmara dos Deputados como do Senado, o objetivo era, diante das controvérsias geradas em torno do Enunciado 331 do TST, apenas pacificar a possibilidade de terceirização de atividade-fim, e não dar presunção absoluta de validade a todo e qualquer contrato civil que envolva prestação de trabalho.
A se manter essa tendência completamente absurda no STF, qualquer decisão da Justiça do Trabalho que reconheça a nulidade de um contrato civil por fraude poderá ser submetida à revisão perante a corte constitucional. Haverá (na verdade já está havendo) uma enxurrada de “reclamações constitucionais”. Ou seja, a corte terá que examinar milhares de julgamentos, caso a caso, para escrutinar os fatos e dizer se houve fraude ou não, transformando-se na maior Vara do Trabalho do Brasil, usurpando a competência da Justiça do Trabalho.
O saudoso jurista americano Ronald Dworkin, em sua obra O Império do Direito, lançou importante advertência sobre o papel das cortes constitucionais: “ainda que os juízes devam ter sempre a última palavra, sua palavra não será melhor apenas por essa razão”. O STF, a história recente nos ensina, comete erros. A interpretação indiscriminada e arbitrária do Tema 725 em relação a decisões proferidas pela Justiça do Trabalho é um erro gravíssimo, que subtrai direitos sociais constitucionalmente assegurados e garantidos mediante o devido processo legal. Esse erro precisa ser corrigido com urgência.
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022)