Jorge Matsumoto
Maria Cristina Mattioli
Luciana Diniz
A recente decisão do Tribunal Superior do Trabalho, que considera suficiente a mera declaração de hipossuficiência para a concessão da justiça gratuita, é um convite ao uso desenfreado do sistema judicial. Ignorando a crise de recursos públicos e o volume de litígios acumulados, a corte aceitou como válido um mecanismo que incentiva o abuso. A concessão da justiça gratuita, sem exigência de comprovação de insuficiência financeira, não só desrespeita o espírito constitucional como também afronta os princípios da reforma trabalhista, cujo intuito foi justamente tornar o sistema trabalhista mais eficiente e menos vulnerável a práticas predatórias.
A Constituição, em seu artigo 5º, inciso LXXIV, é clara: o Estado deve prestar assistência jurídica gratuita a quem comprovar insuficiência de recursos. Esse princípio não é uma mera formalidade, mas uma garantia para que o benefício alcance apenas os verdadeiramente necessitados. Como bem expõe José Afonso da Silva, o direito de acesso à Justiça não se confunde com o direito de litigar indiscriminadamente; é essencial que o uso dos recursos do Estado seja condicionado à comprovação da necessidade, preservando-se a igualdade de oportunidades para os mais vulneráveis.
O Código de Processo Civil, em seus artigos 98 a 102, e o artigo 790 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) complementam a exigência de comprovação, estabelecendo que o benefício deve ser limitado e concedido apenas mediante evidência cabal da impossibilidade de arcar com os custos. Ao ignorar essas disposições, o TST flexibiliza um direito essencial e abre uma brecha perigosa para uma litigiosidade irresponsável.
É fundamental observar que essa questão já está em análise pelo Supremo Tribunal Federal no contexto da ADC 80, que examina precisamente a constitucionalidade dos critérios para concessão da justiça gratuita previstos na reforma trabalhista. O STF ainda não concluiu o julgamento, mas a expectativa é que a decisão traga uma resposta definitiva sobre a necessidade de comprovação de insuficiência econômica, alinhando-se à proteção dos recursos públicos e à racionalidade no uso do sistema judicial. Ao adiantar-se em um entendimento que dispensa comprovações, o TST assume uma postura controversa, que pode ser revertida pelo Supremo, mas que já coloca em risco a segurança jurídica e aumenta a instabilidade no sistema trabalhista.
TST reabre ‘porteira’ para a advocacia predatória
A visão do ministro Barroso, em sua atuação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), reforça o que Celso Antônio Bandeira de Mello defende sobre a importância de uma administração pública guiada pela racionalidade e pela proteção ao interesse coletivo. Barroso tem buscado conter a onda de ações oportunistas e promover a eficiência do Judiciário Trabalhista, alinhando-se ao entendimento de que o sistema processual deve ser racionalizado para coibir abusos e garantir que as benesses do Estado sejam usadas de forma criteriosa.
Contudo, o recente posicionamento do TST vai contra esses esforços, favorecendo um cenário de litigiosidade sem controle. A decisão tem efeitos preocupantes, especialmente em um país onde o sistema judicial já enfrenta um volume massivo de processos trabalhistas. E agora, ao aceitar uma mera declaração de pobreza como suficiente, sem qualquer análise mais aprofundada, o TST parece disposto a transformar a Justiça do Trabalho em um campo aberto para todos, sejam necessitados ou não.
A decisão também representa um estímulo direto à advocacia predatória, uma prática que se alastra no Brasil e ameaça a integridade do Judiciário. Milton Friedman, ao defender a contenção dos gastos públicos, já alertava que o uso indiscriminado dos recursos estatais em programas sem critério de controle gera um efeito contraproducente: o aumento das despesas sem qualquer retorno concreto para o desenvolvimento social. Escritórios que veem nas ações trabalhistas uma oportunidade de lucro fácil podem agora se valer dessa brecha legal para inundar o sistema com processos infundados.
A concessão indiscriminada da justiça gratuita, ao dispensar qualquer comprovação de insuficiência, pavimenta o caminho para que essas práticas prosperem. O impacto dessa decisão não é apenas financeiro: desvia recursos e esforços de casos que realmente necessitam de intervenção, colocando o Judiciário em um beco sem saída onde prevalece a litigância pela litigância, e não pela busca de Justiça.
A reforma trabalhista, inicialmente, trouxe efeitos significativos para a Justiça do Trabalho, reduzindo o número de novas ações, os custos operacionais e o volume de processos julgados por magistrado, o que resultou em um aumento da eficiência do sistema. Essa reforma condicionou a concessão de justiça gratuita à comprovação de insuficiência econômica, o que limitou litígios infundados e reservou o benefício a quem realmente necessita. Agora, ao reabrir essa “porteira” com uma simples declaração de pobreza, o TST ameaça desfazer esses avanços e retornar ao cenário de litigância excessiva que a reforma trabalhista tentou corrigir.
A facilidade de acesso à justiça gratuita, sem critérios sólidos, incentiva o uso do Judiciário para fins oportunistas e abre espaço para a advocacia predatória, sobrecarregando o sistema e desviando recursos que deveriam estar disponíveis para os mais necessitados.
TST encampa ideia de justiça como mero ‘ato de fé’
Em julgamentos anteriores, como na ADI 5.766, o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado sobre a necessidade de se evitar a concessão indiscriminada da justiça gratuita. O STF reafirmou a visão de José Afonso da Silva, que defende a importância de critérios rigorosos para evitar o abuso de benefícios judiciais e preservar o bom uso dos recursos públicos.
Os ministros enfatizaram que o objetivo das limitações trazidas pela reforma trabalhista é desestimular o abuso e proteger os recursos públicos para aqueles que realmente precisam. Essa decisão do STF deixa claro que a simples declaração de pobreza pode abrir brechas para um uso indevido do sistema judicial, comprometendo a prestação jurisdicional de maneira séria. Contudo, a decisão do TST desconsidera essa advertência, ao adotar um entendimento que desobriga o requerente de comprovar a real necessidade do benefício.
Ao final, a ironia não poderia ser mais amarga. Após a reforma trabalhista, que trouxe razoabilidade e critérios mais rigorosos para a concessão da justiça gratuita, vemos agora essa tentativa de retorno ao passado, em que a “porteira aberta” era regra. Em uma decisão que transforma a concessão da justiça gratuita em um ato quase automático, dispensando qualquer comprovação real de insuficiência financeira, o TST ressuscita um sistema vulnerável ao abuso. Com uma mera declaração, o benefício torna-se acessível a todos que sabem “invocar” a hipossuficiência econômica sem qualquer prova concreta, fragilizando a proteção oferecida aos verdadeiramente necessitados.
O Judiciário Trabalhista, que recentemente havia dado sinais de maior rigor e racionalidade, agora abraça um conceito de justiça como um simples “ato de fé”, em que não se exigem mais fatos, provas ou um mínimo de diligência. O sistema, que deveria ser um bastião de proteção social para aqueles que realmente precisam, flerta com a ingenuidade, e o direito fundamental à justiça gratuita é relegado a uma mera formalidade. Em vez de proteger e democratizar o acesso à Justiça de forma equilibrada, a decisão pavimenta o caminho para um mar de abusos, conferindo à litigância predatória um passaporte direto para o tribunal.
Assim, a justiça gratuita, em sua nobre intenção original, parece agora mais disposta a estender suas benesses a todos que declarem sua “pobreza”, sem distinção. A mensagem, afinal, parece clara: para que cumprir requisitos, se basta a palavra para invocar o “milagre” da gratuidade?
Jorge Matsumoto
é sócio do Bichara Advogados.
Maria Cristina Mattioli
é desembargadora do Trabalho aposentada. Pós-doutora em Estudos Internacionais pela London School of Economics.
Luciana Diniz
é advogada, assessora jurídica do Ciesp e conselheira da Fecomercio.